Após uma pesquisa aprofundada, desvendamos o enigma que persiste
até os dias de hoje: por que o livro de Oliveira Paiva, "Dona Guidinha do
Poço", permaneceu negligenciado ao longo de seis décadas.
Oliveira Paiva nasceu em 1861 e morreu em 1892.
Sua obra possivelmente foi concluída em 1891, um ano antes a sua morte,
contudo, sua publicação se deu apenas em 1952, 60 anos após seu falecimento, pela crítica literária Lúcia
Miguel Pereira.
O romancista e poeta cearense
Antônio Sales, amigo de Oliveira Paiva e fundador da Padaria Espiritual, já
residindo no Rio de Janeiro, recebeu de Tereza Botelho, viúva de Oliveira
Paiva, o manuscrito do livro "Dona Guidinha do Poço" e entregou-o a
José Veríssimo para publicação na Revista Brasileira (1899). Apesar da
interrupção da circulação da revista, alguns capítulos foram publicados nela.
Dezenove anos depois, o escritor Monteiro Lobato
escreve a Antônio Sales, em carta datada de 30 de novembro de 1918, na qual
detalha os planos editoriais de sua revista.
“Meu sonho, na Rev. do Brasil, é fazê-la crescer pelo país inteiro, de
modo a ligar todos os espíritos superiores; e pô-la a serviço deles, não só
para a publicação das suas obras, como para a divulgação das anteriores, já
publicadas. Não procuro reunir nela os medalhões. Entram velhos e novos,
contanto que revelem valor. Erro diariamente na apreciação do valor, submeto-me
às vezes às injunções de amizade, de simpatia, mas dado o desconto da
contingência humana - procuro fazer dela um instrumento sério e honesto de
entrelaçamento mental como não existiu nem existe outro no país. Está no meu
programa publicar ensaios críticos sobre as obras injustamente esquecidas, ou
mal conhecidas.”
Nesta mesma carta, Lobato menciona "Dona Guidinha do Poço":
“Outra
novela que merece ser tirada do ostracismo é a D. Guidinha do Poço (grifamos).
Parece-me que a Revista Brasileira não a publicou integralmente. Com quem
estarão os originais? Já escrevi a várias pessoas a respeito, sem resultado.
Acho muito bonito aquilo, e queria até editá-la. Faz parte do meu programa uma
seção editorial, por um sistema novo, que organizo. Pus, e estou pondo, a
Revista em contato com todas as cidadezinhas do Brasil onde haja uma livraria
ou papelaria - já fichei 200 - e as obras editadas pela Revista aparecerão
nessas 200 casas ao mesmo tempo. Poucos exemplares, 3, 5,10, conforme a
importância do lugar, mas aparecerão, e serão adquiridas pelo menos em parte.
Obterei assim uma difusão que ninguém supôs nunca possível. Já fiz a experiência
com o meu livro, e o resultado foi que neste semestre (precisamente 5 meses)
tiro dele 8.000 ex. em três edições”.
Em outra carta, datada de 2 de janeiro de 1919, o
assunto passa a girar em torno do livro de Oliveira Paiva. Diz Lobato:
“Tanto tempo andei atrás de boas informações sobre a Guidinha do
poço e afinal me chegam elas inesperadamente e da melhor fonte. Tenho cá a
Revista Brasileira, mas com falta dos últimos fascículos onde vem o final da
primorosa novela. Desejo muito editá-la em volume porque é um crime tê-la enclausurada
numa revista hoje rara. Mas, nesse caso, com quem devo me entender a respeito
de direitos autorais? Na qualidade de editor tomo cautelas para evitar futuros
aborrecimentos. Preciso de informações a respeito. Fica desde já entendido
que o amigo (Antônio Sales) (grifamos) prefaciará a obra e eu me esforçarei
por que na fatura material não destoe o livro das excelências da obra. Quero
ver se a faço ilustrada. Depois, muita propaganda e reclame”.
Tudo indicava que, Antônio Sales, tinha o romance de Oliveira
Paiva. Nesse sentido, escreveu Lobato, em 25 de fevereiro de 1919:
“Quanto ao romance do Paiva, aqui farei copiar o que falta ao que me vai mandar, e havemos de fazer uma boa edição. Não era conveniente virem esses originais com um a revisão sua? Há de por força haver gatos neles”.
Em 5 de abril de 1919, Lobato reitera:
“Vamos ver se me arruma o Paiva. Dá um belo volume, sobretudo se
eu puder fazê-lo ilustrado”.
Em 28 de abril de 1919, referindo-se ao seu Urupês que, após o
esgotamento de três edições sucessivas, havia despertado a atenção de Rui
Barbosa, então candidato à Presidência da República, que o mencionara numa
conferência, intitulada A questão social e política no Brasil proferida no
Teatro Lírico do Rio de Janeiro a 20 de março de 1919, Lobato refletiria sobre
o poder da crítica, não sem um certo tom de desânimo e conformismo, numa
observação que poderia facilmente ser aplicável à Dona Guidinha do Poço, que o
editor buscava resgatar ao esquecimento:
“O Rui fez-se-me evaporar toda a terceira edição dos Urupês e meter no
prelo a quarta, atingindo assim a onze milheiros em nove meses. Hei de te
mandar um da nova edição, um pouco melhor do que as anteriores. O Jeca
popularizou-se horrivelmente. Raro o dia em que não o vejo citado nos
jornais. No Rio já está até em música e me consta que em breve surgira à luz da
ribalta. O Rio atirou-se com furor uterino aos Urupês devorando 2000 exemplares
em 15 dias, esgotando a edição e fazendo pedidos que quase absorvem já a metade
da quarta. Que força tremenda é a palavra do Rui! E que sorte a minha! Isto
entristece. Tudo na vida depende da “chance”, tal qual como na roleta. Quantos
livros preciosos por aí ignorados só porque os não favoreceu a crítica, porque
os tratou com indiferença ou má-fé! Mas é assim a vida e não vale deblaterar
contra”.
Em 1º de junho de 1919, Lobato enfatiza a expectativa pela chegada de
"Dona Guidinha do Poço":
“Quanto à Guidinha que venha, que
benvinda será”
Na carta de 20 de agosto de 1919, consta o registro do recebimento do
livro e Lobato comenta sobre os direitos autorais:
“Estou com uma carta sua em
atraso. Veio com ela a Guidinha. Quanto à propriedade literária, a primeira lei
que cuidou disso entre nós foi uma de 1898 estabelecendo o prazo de 50 anos da
data da publicação da obra. Ora a Guidinha saiu em 99, já no regime dos 50
anos. Não está, pois, no domínio público, e eu necessitava duma autorização dos
herdeiros para reeditá-la. Dá-se entre nós uma coisa curiosa: a edição de uma
obra qualquer, literária, é um negócio insignificante, que raro dá um pequeno
lucro. Mas se um editor se mete a fazê-la sem autorização do autor ou herdeiros
corre o risco de ver cair-lhe em cima um processo, com pedido de gorda
indenização. [...] O caso, quanto à Guidinha, está pegando aqui. Não pode o
amigo indicar-nos os herdeiros do Paiva? Dirigindo-nos a eles temos esperança
de obter a autorização salvaguardadora”.
Em carta de 3 de outubro de 1919, Lobato responde:
“Quanto ao negócio da Guidinha, ficamos entendidos. Edito-a
logo que puder, independente de mais nada. A sua carta tirou-me os
receios”.
Em outra carta, posterior, sem data, Lobato escreve:
“Recebi carta, retrato, Guidinha e não respondi por vários motivos. 1º
porque me aborreceu – perdoe a expressão – o tom malcriado da carta versus Alemanha.
Não que eu tenha nada com a Alemanha, nem eram minhas aquelas palavras que te
irritaram (eram do Neiva) mas pelo tom. Respondi com raiva, mas não mandei a
carta, vendo que era tolice brigar por tão pouco. Cada um tem lá o direito de
pertencer a este ou aquele partido – e em matéria e sociologia o que há são
partidos políticos, violentos, extremados. A calma e filosófica apreciação de
factos é impossível quando o problema social é de nossos dias e sofremos a
influência das correntes de propaganda. Você, por exemplo, tem a visão
apaixonada pela apresentação francesa dos factos, vê a Alemanha através dos olhos
gauleses e faz corpo com a obra política movimentada pela machina de propaganda
aliada. É uma contingencia humana, e no direito teu. Já comigo dá-se o
contrário. Vejo os factos por um outro prisma; tenho que os provar se
equivalem, saem todos da mesma massa, /fl.2/ e são bons ou maus conforme são
fracos como nós ou fortes como a Alemanha, a Inglaterra, os E. U.. Mas como a
violência da corrente aliada revoltou-me, fiz como Você, esqueci a filosofia e
alistei-me no partido contrário. Sou pró-Alemanha. Considero-o o único país
civilizado, culto, decente, digno de viver. Aprovo incondicionalmente. tudo o
que a Alemanha fez, invasão da Bélgica, destruição da rança, bombardeio de
catedrais etc. Só lamento que o não fizesse em escala maior ainda, ando cabo de
todos os povos latinos, inclusive o nosso, que é latino da África, à força de
gás lacrimogêneo, gás de mostarda, gás do diabo. Tudo que não é alemão para mim
traz o cunho duma marca inferior, e vice-versa. Como vê, partidarismo
extremado, violento, injusto, cego – tal qual o teu. Não há, pois, entre nós,
harmonia possível neste ponto, e não vale a pena perdermos tempo com esta
politicagem”.
Após dez meses, uma carta de Lobato datada de 1º de
setembro de 1921, retoma a ideia da publicação de "Dona Guidinha do
Poço":
“Não acha que já é tempo de
fazermos as pazes? Você está brigado comigo, mas eu estou disposto a pagar na
mesma moeda porque continuo a ter Antônio Sales em alta estima e a fazer
propaganda dos seus livros sempre que me ocorre oportunidade. Além disso, a
vítima da sua turra está sendo o Oliveira Paiva, cuja D. Guidinha inda não
desisti de vulgarizar. Nem por amor dele você se resolve, caro e neurastênico
Sales, a reatar amizade com o Lobato? (grifos) Vamos lá! Toque nestes ossos
e retomemos o caminho do ponto em que a Alemanha nos apartou. A Guidinha! Só
cai no domínio público em 1949! E para dá-la agora só com autorização dos
herdeiros. Não sei como resolver isto, pois não os conheço nem sei onde moram.
Salva-me, Sales! Descobre-me os homens. O Paiva precisa sair da
obscuridade, e sairá, se fizermos as pazes”. (grifos)
Em resumo, percebe-se que Lobato tentou
editar o livro de Oliveira Paiva. Alguns autores afirmam que Lobato deixou de
publicá-lo, possivelmente devido a questões de direitos autorais ou pelo fato
de sua casa editorial ter enfrentado uma crise a partir de 1924.
Com todo o nosso respeito, discordamos. Pois as
tratativas começaram em 1918. Apenas deixamos algumas questões no ar:
Apenas deixamos algumas questões no ar:
Na carta de 3 de outubro de 1919, Lobato responde:
“Recebi carta, retrato, Guidinha e não respondi por
vários motivos. 1º porque me aborreceu – perdoe a expressão – o tom malcriado
da carta versus Alemanha. Não que eu tenha nada com a
Alemanha, nem eram minhas aquelas palavras que te irritaram (eram do
Neiva)....”.
Na última carta (1º de setembro de 1921) Lobato fala em: “fazermos as
pazes?”
Enfim, percebe-se que, devido à “turra” persistente de Antônio Sales, o
livro de Oliveira Paiva não foi publicado por Monteiro Lobato.
No entanto, podemos afirmar que se Antônio Sales
tivesse aceitado, o livro de Oliveira Paiva teria tido mais repercussão à
época.
Fonte: Correspondências de Monteiro Lobato e Antônio Sales,
Arquivo- Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa.)
E o “romance” continua:
Anos depois, antes de falecer em 1940, Antônio Sales confiou os
originais ou cópias do romance de Oliveira Paiva a Américo Facó.
Em 1931,
a filha de Oliveira Paiva enviou uma carta a Antonio Sales, solicitando
informações sobre a publicação de "Dona Guidinha do Poço".
Fonte: Inventário do Arquivo Antônio Sales / Fundação Casa de
Rui Barbosa.
Em tempo: Não encontramos nos
pertences da filha de Oliveira Paiva, resposta dessa carta, como informou irmã
Simone Maria Fortes – Secretária do Seminário.
Nas páginas seguintes, um resumo
das cartas encontradas no inventário do Arquivo de Antônio Sales sobre a
publicação de “Guidinha do Poço”, dirigidas a viúva de Antônio Sales, de lavra
de Américo Facó. Fonte: Fundação Casa de Rui Barbosa.
Nota: Américo Facó
escreve: “Não posso fazer sem autorização de herdeiro ou herdeiros legítimos de
Paiva, se acaso existem.” “se não houver herdeiros, poderei tratar da
publicação como se fora um livro de Sales”. (grifos)
Na carta seguinte, ele pede à viúva de Sales que comunique à filha de Oliveira Paiva que os originais já estão em São Paulo e que os direitos autorais cabem a ela.
Nota: Em duas outras cartas se percebe que Facó, pede que os direitos autorias, sejam
divididos entre as duas irmãs de Oliveira Paiva, Luiza de Oliveira Paiva e Rosa
de Oliveira Paiva (falecida em junho 1951) mãe de José Joaquim de Oliveira Paiva que,
segundo a família, não recebeu sua parte dos direitos autorais. Posteriormente, a pesquisadora Lúcia Miguel Pereira,
incumbida pelo editor José Olympio de escrever o volume XII da História da
Literatura Brasileira, abordando a prosa de ficção de 1870 a 1920, deparou
com o romance na Revista Brasileira e, impressionada com sua
qualidade, e curiosa em conhecer seu desenlace, pôs-se em busca dos capítulos
restantes, e acabou descobrindo os originais em mãos de Américo Facó. Em
entrevista ao jornal Tribuna da Imprensa em 1952, ela revela:
“Tive, porém, a glória de descobrir e poder lançar um escritor inédito – Manuel
de Oliveira Paiva – cearense, autor de um dos melhores romances regionalistas
que conheço – “Dona Guidinha do Poço”. Compilando a “Revista Brasileira” de
José Veríssimo que se editou em fins do século passado (séc. XIX), dei com a
publicação, em série, do referido romance que ficou inacabado, porque a
“Revista Brasileira” também se acabou. Vi logo que se tratava de uma obra de
valor e fiquei obcecada pela ideia de descobrir - lhe o final a qualquer preço.
Escrevi para o Ceará, dirigi-me a escritores de lá, percorri tudo o que é
biblioteca aqui no Rio. Já estava começando a desanimar, quando o acaso fez-me
encontrar, numa reunião íntima, aquele que detinha o tão ambicioso tesouro – o
escritor Américo Facó.” Depois procurou Paulo Duarte, diretor
da editora Ipê, que mostrou interesse pela obra obtida por Américo Facó com
“anuência dos herdeiros”.
Nota:
Parte dos direitos autorias que seriam de Rosa de Oliveira Paiva, irmã de
Oliveira Paiva, falecida em 51, passariam para seu filho José Joaquim de
Oliveira Paiva que, segundo a família, não os recebeu. Enfim,
Lúcia Miguel Pereira, confiou a Ipê a cópia datilografada da obra. Mas a
editora interrompeu suas atividades e o livro foi encaminhado para a editora
Saraiva que a publicou em 1952. A título de curiosidade: No prefácio do
livro publicado pela Saraiva, Lúcia Miguel Pereira, diz que que
recebeu uma cópia e não os originais.
Pondo
um ponto final nessa história, encerramos com as palavras de Monteiro Lobato:
“Além disso, a vítima da sua turra está sendo
o Oliveira Paiva, cuja D. Guidinha inda não desisti de vulgarizar. Nem por amor
dele você se resolve, caro e neurastênico Sales, a reatar amizade com o Lobato?”
Em tempo: Todos os
originais das cartas citadas acima encontram-se no Inventário do Arquivo
Antônio Sales na Fundação Casa de Rui Barbosa.
Um artigo esclarecedor. Essa história ficou anos no anonimato. Lamentável!
ResponderExcluirQue pesquisa? Finalmente a verdade!
ResponderExcluirDigo apenas: "Na vastidão do conhecimento, os pesquisadores são exploradores intrépidos, desvendando os segredos do mundo para iluminar o caminho do entendimento." Meus sinceros parabéns!
ResponderExcluirE pensar que aqui em Fortaleza esse Antônio Sales é visto como como um Deus.
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirA verdade sempre deve ser dita. Parabéns pelo artigo.
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